Promotoras do Ministério Público especializadas em direito da mulher, Fabiana Dal’Mas e Silvia Chakian analisaram cartas e documentos do especial ‘Voz da Mulher: do Brasil Colônia aos dias de hoje’. Reportagem do G1 reuniu cartas escritas por mulheres de 1500 a 1822 que abordam temas que até hoje representam obstáculos.
Juristas do Ministério Público analisaram cartas escritas por mulheres de 1500 a 1822 e notícias atuais sobre temas encontrados nestes documentos, reunidas pelo G1 no especial Voz da Mulher: do Brasil Colônia aos dias de hoje.
As promotoras de Justiça Fabiana Dal’Mas e Silvia Chakian consideram que as cartas do período colonial revelam situações que as mulheres brasileiras vivem até hoje, embora a legislação referente aos direitos das mulheres tenha evoluído no país. Segundo as especialistas, o principal problema decorre da aplicação dessa legislação dentro de uma lógica social que ainda assegura direitos e privilégios masculinos.
A análise da evolução dos direitos da mulher precisa levar em conta um fato elementar: no Brasil, convivemos historicamente com uma pretensa inferioridade feminina (que tem evidentes efeitos práticos e nocivos). Legisladores, sacerdotes, filósofos e escritores homens sempre se empenharam em narrar e construir que “a subordinação da mulher era desejosa no céu e proveitosa na terra”.
“A mulher é sempre representada numa construção de uma narrativa onde ela é a figura relacional, ela existe em razão do homem. Ela nunca é a norma, é o que a gente vê na ideia de Eva, ela é a esposa de Adão e ela e ela traz uma imagem de mulher perigosa que você controla. E a segunda figura da mulher da doutrina Cristã, a figura de Maria, também é relacional. Ela existe em razão de Cristo, ela é a mãe de Cristo e a partir daí na concepção Cristã a gente vê diversas passagens da figura feminina representadas também por ideias de mulheres malvadas, mulheres pouco confiáveis”, diz a promotora Silvia Chakian, autora do livro “A Construção dos Direitos das Mulheres e Crimes contra Mulheres”.
Segundo Chakian, essa narrativa se perpetuou ao menos até a Revolução Francesa, no século 18, quando as mulheres começaram, muito inicialmente, a serem vistas como “sujeitos” para o Direito.
“Essas concepções sobre as mulheres que vão sedimentando valores profundamente discriminatórios sobre nós e são esses valores que originam a produção de um direito igualmente discriminatório. Olhando todos os documentos, o que eu diria primeiro, é pra gente pensar que até a Revolução Francesa, por exemplo as mulheres sequer eram pensadas como sujeitos de direito”, completa.
Em sua criação, a legislação brasileira encampou a ideia da doutrina Cristã de que era preciso controlar os instintos femininos. Silvia Chakian lembra que as primeiras fundamentações criminológicas da nossa história, na chamada “era das bruxas”, durante a Idade Média, foram construídas para se controlar mulheres que estavam começando a adquirir emancipação social, econômica, política e sexual.
“As leis, os manuais dos indivíduos que eram diplomas jurídicos da época a relação que esses diplomas vão dizer que a bruxaria era uma prática da natureza feminina, que as mulheres seriam mais inclinadas à bruxaria porque o demônio preferiria se dirigir a elas porque elas tinham uma fraqueza de espírito”, diz Silvia.
Disso, decorrem quatro séculos de perseguições às mulheres, diz a promotora, com literatura médica, por exemplo, com objetivo de justificar biologicamente uma fraqueza intelectual das mulheres.
A promotora Fabiana Dal’Mas lembra ainda que nos dias de hoje, a bruxaria é associada às religiões de matriz africana e ainda mais mal vista quando exercida por uma mulher.
“Aí você tem um aspecto interseccional que é a questão da liberdade religiosa e do preconceito em relação a essa religião, principalmente quando é praticado por uma mulher. Então essa questão da bruxaria, do que era antigamente, até hoje ainda não é aceito com a devida liberdade religiosa”, diz.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Promotora de Justiça do MP-SP, mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, e presidente da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica, Fabiana Dal’Mas, afirma que uma conexão direta com o passado é o conceito de “legítima defesa da honra” usado em casos de feminicídios após traições.
“Quando a gente lembra que, naquela época, a legislação só previa o adultério feminino, isso também ainda se vê muito muito presente nos dias de hoje desde essa época antiga de 1820. Porque até hoje ainda se argumenta, por exemplo, a legítima defesa da honra para praticar um feminicídio”, explica Dal’Mas.
“O Supremo recentemente disse que essa tese não é constitucional, ela não pode ser aceita, mas por que que o Supremo teve que filmar uma posição nesse sentido? Porque em diversos tribunais do júri espalhados pelo Brasil inteiro essa tese ainda era ainda é utilizada para justificar o feminicídio”, afirma a promotora.
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a tese da legítima defesa da honra não pode ser aplicada em julgamentos nos tribunais do júri como argumento de defesa em casos de feminicídio só ocorreu em março de 2021.
Segundo Chakian, ainda que a legislação não determine mais que o adultério é um comportamento apenas feminino, o julgamento da sociedade por meio da análise de reputação da mulher ainda tem traços do passado.
“Apesar da gente não ter mais um direito dizendo que adultério, é crime esse comportamento de traição ainda é utilizado na forma dos estereótipos de gênero na análise de reputação da mulher, até nos crimes feminicídio. Então quando ela é morta essa análise de traição ou não vai se levantado da forma mais perversa possível, e pode ainda embasar um argumento muito próximo da legítima defesa da honra”, avalia Chakian.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
“E aí você tem uma dupla moral: enquanto para vários homens a questão da traição, nunca foi muito cobrada. Então, um homem sair com várias, ele é bonito, ele é machão, ele é inteligente, ele é forte, ele é bacana. A traição da mulher, ela já é vista como uma mulher que não tem princípios, que não tem moral, e por isso que a legítima defesa da honra é justamente a honra desse homem ferida e ele teria o direito de fazer o que ele quisesse, inclusive tirar a vida da mulher”, completa Dal’Mas.
Chakian conta que o termo “deskit” usado até pouco tempo atrás significa que a as mulheres desquitadas não estavam “kits” com a sociedade, estavam em débito.
“Afinal de contas o casamento era insolúvel para a vida inteira, né? Então essa ideia de de fracasso mesmo um pouquinho as mulheres disseram não se dizia além divorciada a mulher tendo que assumir o sobrenome do marido. Obrigatoriamente sem a contradição contra a partida para o homem. Isso mudou recentemente hoje o homem a mulher pode ou não assumir o sobrenome do marido e existe a contrapartida o homem pode”, diz.
A promotora lembra ainda que o homem podia anular o casamento ao constatar que uma mulher que se declarou virgem, na verdade, há havia sido deflorada.
“O Código Penal também é cheio dessas passagens as mulheres divididas entre mulher honesta mulher não honesta isso é um termo que permaneceu no nosso país até 2005, quer dizer muito pouco tempo atrás. Então, nos crimes sexuais analisava que honestidade da mulher para avaliar a casa de estupro, então, será que ela teve uma vida promíscua se ela bebia, se ela trocava de parceiro, se ela não trocar de parceiro a ideia de que o marido não pratica estupro contra mulher,”, questiona.
A promotora Silvia Chakian afirma que o feminismo que promoveu a criação de leis e categorias, como violência doméstica, violência de gênero, entre outros.
“Se a gente pensar no âmbito internacional, todos esses tratados e convenções internacionais sobre direitos das mulheres já são frutos desse pensamento de que mulheres são titulares de direitos humanos, já são fruto dessa ideia do sujeito de direitos”, afirma.
“E é o pensamento feminista que vai impulsionar essa reforma do direito das leis, que vai demandar essa nova produção e reforma do direito até então vigente na Constituição”, completa.
Chakian e Dal’Mas também lembram como a lei de importunação sexual, de 2018, que revolucionou a maneira de ver o assédio nos meios de transporte e tenta dar um basta nesses crimes.
“A lei de importunação sexual é fruto exatamente dessa ideia de de evolução de amadurecimento da sociedade que se conscientiza sobre comportamentos que antes eram naturalizados. Como é o caso desses assédios nos meios de transporte. E aí sim, vai dizer não isso não é mais tolerado, precisamos de resposta do estado. A lei da importunação é fruto dessa evolução e amadurecimento”, afirma Chakian.
Fonte: G1