SIM
A resposta ao questionamento da razoabilidade da medida enseja uma reflexão que perpassa, para
além de um limitado olhar da problemática social de trânsito em face do Direito Administrativo, também por sua consideração em confronto com a utilização desenfreada e a técnica por parte do legislador e autoridades do ramo penal nesta seara.
A ponderação há de partir do marco legislativo atual, qual seja, a Lei nº 9.503/1997, que instituiu novo Código de Trânsito. Referido regramento cuida, além de disposições de natureza administrativa, também de penais e processuais. Quer sob o aspecto administrativo, quer sob o jurídico-penal, a lei revela influxo expansivo recrudescedor, o qual atendeu ao discurso midiático de busca por reagir de modo implacável à suposta impunidade em face de condutas indesejadas no tráfego.
No entanto, conforme Paulo J. da Costa Jr., no afã de apresentar uma legislação capaz de coibir infrações de trânsito, inúmeros princípios foram ofendidos. Dessa maneira, pode-se compreender essa legislação como reveladora dos característicos do expansionismo penal da sociedade pós-industrial. Isso significa que ela revela caráter antecipatório criminal, procurando conformar comportamentos de conteúdo típico de alçada administrativa, mediante construções penais porosas como são aquelas típicas da sociedade do risco: de perigo abstrato, normas penais em branco, tipos culposos e abertos. Isso revela o fenômeno da administrativização do direito penal, criticado, dentre outros, por Miguel Reale Jr.
O perigo abstrato é paradigmático. Como sabido, crime de perigo presumido é aquele em que o perigo não precisa ser comprovado, sendo suficiente a simples realização da conduta vedada. Atendendo à ideia de contenção de riscos, as legislações abusam da fórmula, com vistas a que não se afigure sequer a possibilidade de lesão a certos interesses. Como nota Ana Elisa Bechara, é justamente em relação a tais delitos que a teoria do bem jurídico e o princípio da ofensividade chegam ao limite de aplicabilidade, pois, embora não se impeça o legislador de proteger interesses em estágios iniciais de perigo quando for suficientemente identificável a relação entre ambos, deve-se ter cautela na análise crítica de propostas de criminalização de ações que constituam meros atos preparatórios ou carentes de ofensividade. A exclusiva desvaloração da ação, sem consideração prévia e posterior sobre a criação de uma situação apta a potencialmente afetar um interesse humano palpável, afigura-se como de questionável validade.
Como emblemáticos casos temos os crimes de “fuga do local do acidente” e “embriaguez ao volante”, envoltos em dificuldades de justificação, apesar da parca discussão judicial. Vê-se que a lei, vulnerando a dogmática por meio da consagração de uma política de repressão a qualquer preço, o que inclui também a abstração de outros meios de regulação, como o administrativo, ou outros mecanismos sociais, como a educação no trânsito ou o melhor treinamento dos agentes públicos, revelou, até agora, a predileção pelo caminho penal. Isso culmina em pouca eficácia e ilegítimo aumento do arbítrio estatal. Esse quadro tem gerado, ademais, posturas como de interpretações forçadas de elemento subjetivo doloso em casos de mortes no trânsito perpetradas por pessoas tidas por embriagadas, como se a mera ingestão de álcool descaracterizasse a culpa, olvidando-se da afirmação de Baleeiro em julgamento do STF, em 1969, no sentido de que a simples embriaguez, por si só, não caracteriza o dolo eventual.
Nesse sentido, uma medida que abstrai da solução penal em prol da administrativa desvela-se meritória no sentido de tutelar o trânsito de modo adequado. A suspensão não é automática e cabe recurso. Em 2017, mais de 400.000 motoristas tiveram a habilitação suspensa no Estado, o que sinaliza, mormente considerando-se que a fiscalização é falha, que o quadro é problemático, devendo haver intervenção. É claro que a singela regra possui alcance limitado, devendo haver outros focos. De qualquer forma, mais apropriado que a exasperação penal.
Luciano Anderson de Souza – Advogado criminalista e professor da Faculdade de Direito da USP
NÃO
Conforme estabelecido na Constituição de 1988, cabe à União a competência para legislar sobre o trânsito. Tanto é que, em 1997, foi editado o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) disciplinando as infrações administrativas e as penais que podem ser cometidas por pessoas habilitadas na condução de veículos automotores. O CTB também disciplinou as regras de autuação e a forma por meio da qual quem for multado, atingindo uma pontuação estabelecida na CNH, terá como punição a suspensão do direito de dirigir.
Sendo assim, quando uma infração é cometida, o proprietário do carro é notificado para que no prazo de 30 dias, a contar do recebimento da notificação, indique o condutor e responsável pela transgressão e recorra da multa ao órgão competente. Caso não haja desta forma, presume-se que o dono do veículo que consta do cadastro (CRLV) do Detran seja o responsável e é em seu nome que será emitida a multa, bem como os pontos respectivos. Ocorre que o número de pessoas autuadas por infrações mais do que dobrou nos últimos cinco anos e a suspensão aplicada ao direito de dirigir para quem extrapolar os 20 pontos ou mais durante um ano, também se multiplicou de maneira exponencial. Até novembro, o tempo de suspensão era em torno de um mês, o que é considerado uma penalidade muito branda.
Visando responder aos críticos, o Contran passou a adotar o mínimo de seis meses de punição. A nova penalidade nos parece muito alta, posto que impedirá o deslocamento de pessoas em seus carros por quase meio ano. Quando esta pena é atribuída ao motorista profissional, significa privá-lo do seu trabalho por quase meio ano, o que na prática se traduz na perda do direito ao exercício de ofício, o que nos parece excessivo e contrário aos princípios sociais encartados na Constituição. Soma-se a este fato que o princípio da individualização da pena administrativa também fica comprometido, pois nivela os tipos das infrações, que, como sabemos, são diferentes com relação a sua potencialidade lesiva e ao grau de punição, por isso tem graduações diferentes, sendo leves, graves e gravíssimas. Ademais, o tripé da segurança no trânsito se assenta na educação, fiscalização e punição.
Quando abandonamos a educação de trânsito, como forma de melhoria na formação do condutor, perdemos a oportunidade de olhar para o futuro e formar melhor os condutores de amanhã, gerando menos ocorrências de trânsito. Do mesmo modo, quando abandonamos a fiscalização, que também deveria ter o caráter educativo e preventivo, chamamos a atenção do motorista, sem ainda puni-lo para respeitar as regras de trânsito. Deste modo o que sobra ao final é apenas a punição.
Outro fator importante, para o aumento do prazo de um para seis meses de suspensão, é o fato de que a maioria dos habilitados, quando são suspensos pelo Detran, não entrega a CNH, passando a dirigir sem a carteira. Se efetivamente o infrator que era punido com um mês de suspensão ficasse impedido de dirigir, ele sentiria que a punição se cumpriu mesmo e não seria necessário o mínimo de seis meses. Entendemos também que cabe à Policia Militar, por intermédio do Batalhão de Trânsito, intensificar as blitzes, a fim de que se efetivem a apreensão das CNHs suspensas.
Por outro lado, cabe ao Contran e ao Detran darem efetivo andamento aos recursos administrativos que são impetrados contra as multas, julgando-os e encaminhando as cartas de suspensão, com a advertência de que o não cumprimento sujeitará o infrator a responder pelo crime de desobediência.
A Comissão de Direito Viário da OAB SP se colocou à disposição do Detran-SP para, em reuniões, sugerir mudanças e melhorais no sentido de trazer ao órgão público seu poder de polícia mandatório e fiscalizatório. No mais, muito embora a nossa posição no sentido de sermos contra o aumento do prazo de suspensão da CNH seja alvo de críticas e de manifestação em sentido contrário, somos pela estrita observância do princípio da legalidade e do devido processo legal nos procedimentos administrativos levados a efeito perante os órgãos de trânsito.
Porém, não é a quantidade da pena e sim a certeza da sua aplicação que fará com que o infrator seja punido e passe então a respeitar as regras vigentes. O fato de termos a punição por seis meses não ajudará a diminuir a impunidade. Não é a lei que faz com que determinada ação seja coibida pelos indivíduos, mas sim a certeza da sua punição.
Infelizmente, estamos diante de um fato (punição mínima de seis meses) em que os bons cidadãos acabam pagando o preço pela conduta de maus indivíduos. Não é demais pontuar também que os agentes de trânsito vêm abusando no número de autuações.
Maurício Januzzi – Advogado, presidente da Comissão de Direito Viário da OAB SP e professor da PUC-SP
Fonte: OABSP