A revisão da Lei de Cotas para acesso a estudantes do ensino médio público a universidades federais (Lei 12.711/2012) marcada para este ano pode ser adiada.
Parlamentares e pesquisadores já admitem postergar o debate para 2023 diante de resistências dentro da Câmara dos Deputados e do governo federal.
Na atual legislatura da Casa, foram apresentadas 19 propostas, sendo nove delas favoráveis à política afirmativa, uma neutra, e nove contrárias, segundo levantamento do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) e do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (Geema).
O alvo dos opositores é a subcota racial. A intenção é modificar o Artigo 3º, que trata do benefício a autodeclarados pretos, pardos ou indígenas.
“Os projetos contrários à lei querem o fim da cota racial. Não acreditamos, no entanto, que possa haver recuos. Mas todo cuidado é pouco com esse governo reacionário. Por isso, existe a possibilidade de adiar a revisão”, diz o líder do PSB na Câmara, Bira do Pindaré, relator do projeto de Lei 3422/21 favorável à Lei de Cotas.
O senador Paulo Paim (PT-RS) também não descarta a possibilidade de postergar a análise da legislação diante do atual cenário político.
“A lei precisa ser avaliada em um conjuntura política mais favorável. O que eu e os movimentos negros podemos garantir é que a lei de cotas não será reduzida, ela poderá ser ampliada, mas não esvaziada”, diz Paim, autor do PL 4656/2020, que assegura a continuidade das cotas e sua aplicação às instituições particulares de ensino. A interpretação de que a revisão pode significar o fim da lei preocupa políticos e pesquisadores.
“A lei não expira e nem tem prazo de validade. Isso aparece em muitas matérias e debates sobre o tema. É um equívoco. O Artigo 7º prevê apenas uma revisão”, diz Luiz Augusto Campos, professor no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), onde coordena o Geema.
A garantia de permanência da lei prevista nos dois projetos converge para análise feita pelos pesquisadores Adriano Senkevics, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e Ursula Mattioli Mello, do Institute for Economic Analysis (IEA).
“O balanço é bastante positivo. É uma lei de abrangência nacional, que abarca todas as instituições federais, todos cursos e todos os turnos. Por ter essa característica, a lei levou alterações também a cursos mais elitizados com patamares baixos de inclusão e mais reativos a uma pauta inclusiva, como medicina e engenharia”, destaca Senkevics, autor, junto com Ursula, do artigo Um balanço dos dez anos da política federal de cotas na educação superior.
Outro avanço destacado por Senkevics é o caráter multidimensional da legislação: “Ela tem uma atenção às dimensões socioeconômicas e étnico-raciais, além das pessoas com deficiência “.
No artigo, os dois autores analisam a lei e sugerem alterações na legislação e no processo de avaliação. Uma das propostas dos pesquisadores contempladas no projeto da Câmara é o acompanhamento constante da aplicação da lei e a promoção de mudanças, quando necessárias.
“Inicialmente, o PL previa a renovação da lei por 50 anos. O relator, porém, fez uma mudança positiva para um sistema de metas alcançadas. Por exemplo, quando universidade de um determinado estado com 70% da população composta de negros alcançar o mesmo percentual de pretos e pardos matriculados, haveria uma revisão”, afirma o deputado Carlos Zarattini (PT-SP) autor do PL 3422/21 junto com Valmir Assunção (PT-BA) e mais 39 parlamentares.
A nova metodologia exige, segundo especialistas, coleta, processamento e divulgação de mais dados por parte do governo. E a escassez de informações é um dos principais problemas apontados por parlamentares e pesquisadores na verificação dos avanços da legislação.
“Há uma carência de dados. Deveria ser implantada alguma ferramenta de forma participativa que fizesse o monitoramento e o acompanhamento constante para implementar mudanças sempre que necessário”, afirma Tatiana Dias Silva, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Doutora em administração pela Universidade de Brasília, Tatiana defende uma ampla discussão do processo de avaliação e de monitoramento antes mesmo de iniciar a revisão da lei e destaca a alteração no artigo 7º feita em 20016.
O texto original de 2012 previa que a avaliação deveria ser promovida pelo Poder Executivo. Com a mudança, a nova redação diz que “será promovida a revisão do programa”, sem especificar o agente.
“Ficou mais ambíguo”, afirma Tatiana Silva.
O parágrafo 6º da lei, no entanto, põe o Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, como os “responsáveis pelo acompanhamento e avaliação do programa”.
O governo, na opinião do deputado Bira do Pindaré, não fez o dever de casa.
“Hoje não temos dados porque o governo não produziu. Não apresentaram nenhuma informação oficial dessa política pública. A gente se baseia em estudos de pesquisadores e de universidades”, lamenta o parlamentar.
A solução apresentada pelo projeto da Câmara para a escassez de dados é similar à proposta por Tatiana Silva. O PL cria o Conselho Nacional das Ações Afirmativas, formado por representantes do governo e da sociedade civil. Se for instituído, o órgão terá a função de monitorar e avaliar a lei, produzir relatórios e sugerir medidas complementares às universidades.
As informações que sustentam os artigos de pesquisadores e orientam os parlamentares resultam de cruzamento de dados obtidos em órgãos e em pesquisas não dedicadas exclusivamente à política de cotas, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e números do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
O processo fica ainda mais complexo diante da impossibilidade de acessar determinados números oficiais.
“Nosso trabalho é artesanal. A base que utilizo é o Censo da Educação Superior do Inep, mas faltam dados, como renda domiciliar do aluno e subdeclaração dos dados raciais. Além disso, o MEC não divulga microdados individuais do Sisu (Sistema de Seleção Unificada), isso compromete qualquer tipo de análise ou pesquisa”, diz Senkevics.
Especialista em gestão de políticas públicas, o autor aponta o atraso do Censo 2020 como um agravante e sugere a substituição do indicador por outro.
“A lei exige que os percentuais de negros, pardos e indígenas estejam de acordo com os da federação, com base no último censo demográfico. O nosso é o de 2010. A revisão da lei poderia substituir a âncora do último censo pela Pnad, realizada com mais frequência, ou uma projeção da população atualizada anualmente. O ideal é que essa determinação seja em uma portaria, mais fácil alterar do que uma lei”.
O esforço estatísticos dos acadêmicos é um contraponto a teses sem fundamento científico, que servem a argumentos contra a subcota racial. Uma delas é a crença de que critérios sociais e econômicos são suficientes para ampliar o ingresso de pretos e pardos no ensino superior.
Estudo sobre a mudanças no perfil de alunos nas universidades federais, entre os anos de 2004 e 2013, mostra uma maior eficiência de políticas de ação afirmativa para negros no ensino superior comparada à seleção socioeconômica.
Assinada pelos economistas Renato Schwambach Vieira, da Universidade Católica de Brasília (UCB), e Mary Arends-Kuenning, da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign (EUA), a pesquisa analisou dados de 170.555 estudantes de 1.025 cursos de graduação que se submeteram ao Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE) entre 2004 e 2010 no primeiro ano letivo.
Segundo Vieira, o trabalho foi baseado em informações sociais e pessoais apresentadas pelos estudantes, que foram classificados como brancos, pretos, pardos, amarelos ou indígenas.
Os dois pesquisadores compararam os dados de instituições com critérios étnico-raciais e sociais com os das universidades com seleção exclusivamente por indicadores sociais.
A presença de estudantes pretos e pardos aumentou 1% no segundo grupo e 20,3% nas instituições com cotas para pretos e pardos.
A mesma conclusão chegaram Senkevics e Ursula Mello. No artigo, os dois afirmam que as “cotas raciais foram essenciais para ampliar o acesso ao ensino superior de todos os grupos contemplados pela Lei de Cotas”.
Na comparação entre programas com recorte racial e outros sem essa dimensão, o primeiro foi “quase duas vezes mais efetivo para o aumento de matrículas de estudantes de escola pública e quase cinco vezes mais efetivo para o aumento de matrículas de estudantes pretos, pardos e indígenas de escola pública do que as cotas sem o critério racial”.
Quem estuda a Lei 12.711 de perto observa a necessidade de subsidiar financeiramente o estudante de baixa renda e a importância de uma Lei de Cotas na pós-graduação para manter o aluno na universidade até o fim da graduação e ampliar horizontes para o mestrado e o doutorado.
“Um mecanismo de exclusão no ensino superior é o custo de vida nas universidades. Se o aluno não tiver recurso, não vai conseguir frequentar cursos integrais, como o de engenharia. Se o sistema for melhor desenhado reduzindo a desigualdade de oportunidades, aumenta a competitividade com aprovação dos estudantes mais talentosos tanto da camada mais rica quanto da mais pobre” afirma Michael França, pesquisador e coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper.
A desigualdade econômica descrita por França pode ser reduzida pela “Bolsa Permanência” proposta no PL 3422/21. O valor a ser definido durante o debate no Congresso deverá cobrir gastos com alimentação, transportes e habitação.
“Não basta ter mais acessos às universidades, se (os estudantes) não tiverem condições de permanecer e terminar os cursos. Mas isso tem impactos financeiros, teremos que calcular um valor e discutir fontes para cobrir essa despesa” afirma o Bira do Pindaré, adiantando que o relatório será concluído ainda em maio, após audiência pública, quando devem começar as negociações para tentar aprovar o projeto nas duas Casas.
Universidades públicas já adotaram sistemas de cotas na seleção para mestrado e doutorado acadêmicos e mestrado profissional, mas com segurança jurídica frágil. Em 2016, o Ministério da Educação (MEC) publicou portaria normativa (nº 13/2016) com as diretrizes sobre ações afirmativas em cursos de pós-graduação das instituições federais de ensino superior. Em 18 de junho de 2020, a normativa foi derrubada pelo Ministério da Educação, no último ato de Abraham Weintraub à frente da pasta. A portaria foi anulada cinco dias depois pelo próprio MEC, restabelecendo a 13/2016.
“É preciso uma lei. Mas o sistema de cotas deve vir alinhado à revisão de processos de seleção, como programas exigindo a proficiência em inglês. Se não tentar destravar essa barreira da língua, não vai conseguir ter efetividade na cota”, diz Tatiana Silva.
De autoria de Orlando Silva (PCdoB-SP) e de outros sete deputados, o projeto 3425/2020 deve dar estabilidade ao programa de inclusão e permanência de negros, indígenas e pessoas com deficiência na pós-graduação.
O PL, que está sob a relatoria da deputada Lídice da Mata (PSB-BA), não trata especificamente da barreira de língua, mas prevê que as universidades criem comissões para aperfeiçoar as ações.
O projeto também determina a elaboração por parte do Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) de pesquisas sobre o perfil dos estudantes. Independentemente do futuro do PL, a fundação prepara um censo da pós-graduação brasileira, ainda sem previsão de início.
Os dados oficiais disponíveis hoje na Capes retratam parcialmente os discentes. Relatórios ano base 2020 enviados pelos programas das universidades trazem o recorte étnico-raciais de somente 54% dos 305.557, seja porque o estudante não declarou ou simplesmente por não dispor dos dados. Se for considerado apenas as informações dos autodeclarados, ou seja de 164.935 alunos, os negros (12.403) e pardos (39.030) representam 31% desse total.
O vazio de informações sobre a pós-graduação é parcialmente preenchido por trabalho de cientista que mostra um avanço de quase 50% nas ações afirmativas.
Durante pesquisa de doutorado no IESP-UERJ, Anna Carolina Venturini analisou cerca de 2,7 mil editais de seleção de programas de pós-graduação acadêmicos de universidades públicas e verificou que, até o início de 2018, já existiam 737 programas (26,4% da amostra) com algum tipo de ação afirmativa para ingresso nos cursos. No pós-doutorado do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a cientista política observou 1.090 programas (39,4% da amostra) com ação afirmativa, até outubro de 2021.
Com ou sem revisão, a efetividade da Lei de Cotas depende, em parte, de ações para evitar fraudes nas subcotas étnico-raciais. Até o fim de 2020, das 69 universidades federais, pelo menos 53 universidades adotavam algum tipo de comissão de heteroidentificação, segundo levantamento de Sales Augusto dos Santos, da Universidade Universidade Federal de Viçosa (UFV), citado no artigo de Senkevics e Ursula Mello.
Na pesquisa de Santos, foram constatadas instituições com comissão de verificação, que analisam denúncias de fraudes nas subcotas raciais, e/ou de validação, que atuam para confirmar a autodeclaração étnico-racial dos ingressantes no ato de matrícula.
Os critérios de aferição e o quórum de deliberação do órgão colegiado, porém, são variados. A dupla de pesquisadores defende a criação de uma lei com critérios objetivos e homogêneos para todo país com objetivo de mitigar os problemas.
Eles afirmam que não é raro processos judiciais motivados por denúncias de fraude se arrastarem por anos resultando em “expulsão de estudantes em semestres avançados do curso, após uma contenda de recursos por parte das instituições e dos acusados”.
A proposta do relatório do PL é no sentido de legitimar e legalizar as comissões.
“É a melhor solução que se apresentou: as universidades organizam comissões para analisar as diversas denúncias de desvios e fazer os ajustes necessários. Como não há uma legislação que as ampare, as comissões acabam fragilizadas. Muitas das vezes, o judiciário mantém decisão que não confere com o objetivo da legislação”, afirma Bira do Pindaré.
O percentual de professores pretos e pardos no ensino superior federal está longe de refletir o de estudantes. Números do IBGE e do MEC dão a dimensão da distância, apesar do primeiro ser mais abrangente.
Em 2018, negros eram 50,3% dos cerca de 2,1 milhões de discentes do ensino superior da rede pública, segundo o IBGE. No mesmo ano, negros eram aproximadamente 16% dos docentes em universidades do país, cerca de 65,2 mil, conforme dados do Censo da Educação Superior INEP-MEC.
O número é próximo aos 60,2 mil de 2014, quando a legislação que garante cota de 20% para negros em concurso público federal começou a vigora.
A lei 12.900, porém, não foi efetiva para inclusão de pretos e pardos a cargos de docentes em universidades. O motivo é a regra que só permite reserva a partir de três vagas.
“As universidades não estão reservando vagas. Elas são pulverizadas. Por exemplo, há dez vagas, mas uma é para história da arte e as outras são de jornalismo esportivo, redação etc. No final, nenhum desses concursos tem mais de três vagas” afirma Tatiana Silva.
Apesar da Acórdão da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) no 41/2017, aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), condenar o fracionamento das vagas de um edital por áreas de conhecimento com menos de três vagas e a proliferação de editais para um mesmo cargo com menos de três vagas, apenas 35 das 69 universidades federais reservaram os 20% a candidatos negros, como o previsto em lei, segundo artigo de Luiz Mello, professor de sociologia na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Números da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) apresentados na pesquisa de Mello mostram que, entre 2015 e 2019, apenas 0,53% dos docentes efetivos contratados por universidades federais ocuparam vagas reservadas em editais para candidatos negros.
Nesse período, entre as 63 instituições que promoveram concurso, 36 não contrataram nenhum professor negro. Diante desses dados, o professor avança no debate: “Não basta a lei ser mais efetiva, é urgente uma política de reparação, considerando as vagas que deveriam ter sido preenchidas por candidatos negros e não foram”.
O MEC e os deputados Dr. Jaziel (PL-CE) e Dayane Pimentel (União-BA), autores de projetos pelo fim da subcota racial, não responderam a pedidos de entrevista da BBC News Brasil.
Fonte: BBC