18. jul. 2022

Brasil não tem lei federal que trate de violência obstétrica ou parto humanizado; maioria dos estados tem legislação sobre tema

Em alguns casos, as leis descrevem procedimentos que podem configurar violência, como a episiotomia. Porém, nem todos prevêem punição.

Não há lei federal no Brasil ou outro tipo de regulamentação nacional sobre o que configura ou não violência obstétrica. O termo é utilizado para caracterizar abusos sofridos por mulheres quando procuram serviços de saúde durante a gestação, na hora do parto, nascimento ou pós-parto. Os maus-tratos podem incluir violência física ou psicológica, podendo fazer da experiência do parto um momento traumático para a mulher ou para o bebê.

Apesar de não haver lei específica, os atos entendidos como violações dos direitos das gestantes e parturientes podem ser enquadrados em crimes já previstos na legislação brasileira, como lesão corporal e importunação sexual, por exemplo.

Ao contrário da União, ao menos 18 estados e o Distrito Federal possuem algum tipo de legislação sobre o tema – 8 contra violência obstetrícia e 10 sobre parto humanizado. Porém, por não fazer parte do Código Penal e não haver lei federal que trate do assunto, não há previsão de prisão, nestes casos.

Alguns estados determinam pagamento de multa. É o caso do Paraná, que prevê o pagamento de cerca de R$ 100 mil.

Na Câmara dos Deputados, há alguns projetos sobre o tema em tramitação. O mais recente deles é deste ano; apresentado por 13 deputadas de diferentes partidos, inclui a questão da violência no âmbito da criação de uma política nacional de parto humanizado.

“A necessidade de punibilidade é urgente. Violência obstétrica é crime e precisa estar prevista na legislação federal. É um crime de violência que ainda ‘dialoga’ com o crime de gênero”, disse a coordenadora de educação, serviço e legislação da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo), Kleyde Ventura de Souza.

Na opinião da coordenadora, a punição nestes casos não vai acabar com a violência obstétrica, mas vai constranger quem a pratica.

No caso registrado nesta semana no Rio de Janeiro, em que um médico foi flagrado estuprando uma paciente, Kleyde enaltece o papel das profissionais de saúde que, cientes da prática de violência sexual e de violência obstétrica, produziram provas necessárias para a prisão dele, por meio de um celular.

“Há de se exaltar a importância que este grupo de mulheres teve para que a punição, neste caso, fosse realizada. Foram assertivas e fundamentais. Até para que o tema de violência obstétrica fosse retirado de debaixo do tapete”, disse ela.

‘Me chamou de assassina’

Em 2017, uma mãe, que preferiu não se identificar, entrou em trabalho de parto e se recusou a tomar antibiótico. Ela foi chamada de “assassina” pela médica plantonista.

“Eu tinha estudado e sabia dos meus direitos. Ela só parou quando leu meu plano de parto e viu que eu tinha curso superior. Aí falou que não sabia porque naquela maternidade se ‘nivelava por baixo’. E eu sou uma mulher, preta e com ensino superior”, contou.

Outra violência que ela denuncia aconteceu durante a cesárea. “Eu pedi ao cirurgião para tirar o cotovelo do meu peito porque estava sufocando, pois eu reconheci ali talvez uma manobra de Kristeller e ele disse que não tinha como fazer a cirurgia de outra forma”, contou a mulher.

manobra de Kristeller é uma técnica que pressiona a parte superior do útero para acelerar a saída do bebê, não recomendada pelo Ministério da Saúde.

Em 2021, em Cosmópolis, no interior de São Paulo, a maquiadora Victoria Trujillo perdeu seu filho no 8º mês de gestação por causa da demora em seu atendimento, mesmo com os constantes pedidos de ajuda e relatos de dor intensa que ela fazia à equipe do hospital. Além disso, segundo relata, quando finalmente foi atendida, o médico cometeu assédio sexual contra ela, tocando-a de forma inapropriada.

Victoria disse que a repercussão do caso de violência em São João do Meriti a fez ter sentimentos conflitantes. “[A repercussão é] Positiva, porque pode ser que a justiça seja feita. E negativa, porque é muito difícil mexer nessa ferida.”

Assim como Victoria, Fernanda Wartha Gripa relata que também foi obrigada a esperar atendimento enquanto sentia fortes dores. “Eu comecei a implorar para as enfermeiras, eu berrava que precisava de ajuda. Fiquei duas horas berrando.”, contou. Ela também contou ter percebido uma série de erros no prontuário e desinteresse de parte da equipe médica, inclusive em exames pré-natal do bebê, o que também pode ser considerado violência obstétrica.

Episiotomia

Outro procedimento que é questionado é a episiotomia, que consiste em aumentar a abertura vaginal por meio de um bisturi para facilitar a saída do bebê. Nas legislações estaduais que mencionam a prática, recomenda-se que ela seja utilizada apenas em casos imprescindíveis, quando há risco para mãe ou para o bebê caso o procedimento não seja feito.

Para o Ministério da Saúde, ela não deve ser realizada de rotina, “porém, de forma restrita, sempre antes avaliando seus riscos, após rigorosa avaliação médica, pode ser útil em situações excepcionais.”

Para o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), tanto a manobra de Kristeller como a episiotomia configuram violência obstétrica.

“No contexto da saúde da mulher e da saúde reprodutiva são vivenciados agravos sérios que violam os direitos da mulher”, disse o Cofen, em nota.

Já a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) é contra o uso do termo “violência obstétrica”.

“Trata-se de uma expressão criada com evidente conotação preconceituosa que, sob o falso manto de proteger a parturiente, criminaliza o trabalho de médicos e enfermeiros na nobre e difícil tarefa de atendimento ao parto”, disse a Febrasgo.

Sobre a episiotomia, a Febrasgo defendeu que ela pode ser essencial em alguns casos.

“Desta maneira, incluir a episiotomia no rol dos procedimentos de ‘violência obstétrica’ não é apenas injusto com os(as) parteiros(as), mas perigoso para mulheres e bebês”, se posicionou.

Manobra de Kristeller

A manobra de Kristeller, técnica que pressiona a parte superior do útero para acelerar a saída do bebê, quando mencionada pelas leis estaduais, não é recomendada.

Trata-se de um procedimento que gera dor e desconforto para a mãe, podendo causar lesões ao bebê. Ele já foi banido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Exame de toque

As leis estaduais que tratam do exame de verificação de dilatação cervical, o exame de toque, recomendam que ele não seja feito de forma indiscriminada ou por vários profissionais. Segundo a OMS, o recomendado é uma vez a cada quatro horas.

Respeito ao desejo da parturiente

Todas as legislações estaduais sobre o tema dizem que ignorar as demandas da mulher relacionadas ao cuidado e à manutenção de suas necessidades básicas, desde que tais demandas não coloquem em risco a saúde da mulher e da criança, é violência obstétrica.

Os desejos dela sobre o parto, seja quanto a posição e a medicação, devem ser respeitadas, observando os riscos para o bebê e para a mãe.

Legislação estadual

No Brasil, 8 estados e o Distrito Federal têm leis que tratam explicitamente de violência obstétrica, seja em leis específicas, seja em leis mais gerais sobre violência contra mulheres, como é o caso de Santa Catarina.

São eles:

  1. Distrito Federal
  2. Goiás
  3. Mato Grosso do Sul
  4. Minas Gerais
  5. Paraná
  6. Pernambuco
  7. Rondônia
  8. Santa Catarina
  9. Tocantins

Outros 10 não usam a expressão “violência obstétrica”, mas têm legislações que tratam de parto humanizado; alguns desses dispositivos legais incluem exemplos de práticas recomendadas e não indicadas.

São eles:

  1. Acre
  2. Alagoas
  3. Amazonas
  4. Ceará
  5. Mato Grosso
  6. Paraíba
  7. Piauí
  8. Rio de Janeiro
  9. Roraima
  10. São Paulo

Os estados que contam com leis específicas sobre o tema incluem não apenas violências físicas contra a gestante, mas também outros tipos de ação ou omissão que causem sofrimento psicológico à gestante, como ofensas verbais e tratamento agressivo, por exemplo.

Direito a acompanhamento durante o parto

A Lei Federal 11.108/2005, conhecida como Lei do Acompanhante, garante às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, o parto e o pós-parto imediato nos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), seja da rede própria ou conveniada.

A lei é válida tanto para parto normal quanto para cesariana, e a presença do acompanhante não pode ser impedida pelo hospital, médicos, enfermeiros ou qualquer outro membro da equipe de saúde.

O acompanhante é de escolha da gestante e pode ser o marido, a mãe, uma amiga ou amigo, ou qualquer pessoa de confiança, sem a necessidade de haver parentesco.

Além da Lei do Acompanhante, outras duas resoluções asseguram a presença de uma pessoa indicada pela parturiente durante o parto: a Resolução Normativa RN 211/2010 da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementa), órgão que regula os planos de saúde no país; e a Resolução da Diretoria Colegiada RDC 36/2008 da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

A resolução da Anvisa estendeu o direito ao acompanhante também à rede privada, ao estabelecer que todos os Serviços de Atenção Obstétrica e Neonatal, sejam públicos, privados, civis ou militares, deve permitir a presença de acompanhante de livre escolha da mulher. Já a resolução da ANS dispõe sobre a obrigatoriedade dos planos de saúde de arcarem com as despesas relativas aos acompanhantes das gestantes.

Fonte: G1

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