Em alguns casos, as leis descrevem procedimentos que podem configurar violência, como a episiotomia. Porém, nem todos prevêem punição.
Não há lei federal no Brasil ou outro tipo de regulamentação nacional sobre o que configura ou não violência obstétrica. O termo é utilizado para caracterizar abusos sofridos por mulheres quando procuram serviços de saúde durante a gestação, na hora do parto, nascimento ou pós-parto. Os maus-tratos podem incluir violência física ou psicológica, podendo fazer da experiência do parto um momento traumático para a mulher ou para o bebê.
Apesar de não haver lei específica, os atos entendidos como violações dos direitos das gestantes e parturientes podem ser enquadrados em crimes já previstos na legislação brasileira, como lesão corporal e importunação sexual, por exemplo.
Ao contrário da União, ao menos 18 estados e o Distrito Federal possuem algum tipo de legislação sobre o tema – 8 contra violência obstetrícia e 10 sobre parto humanizado. Porém, por não fazer parte do Código Penal e não haver lei federal que trate do assunto, não há previsão de prisão, nestes casos.
Alguns estados determinam pagamento de multa. É o caso do Paraná, que prevê o pagamento de cerca de R$ 100 mil.
Na Câmara dos Deputados, há alguns projetos sobre o tema em tramitação. O mais recente deles é deste ano; apresentado por 13 deputadas de diferentes partidos, inclui a questão da violência no âmbito da criação de uma política nacional de parto humanizado.
“A necessidade de punibilidade é urgente. Violência obstétrica é crime e precisa estar prevista na legislação federal. É um crime de violência que ainda ‘dialoga’ com o crime de gênero”, disse a coordenadora de educação, serviço e legislação da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo), Kleyde Ventura de Souza.
Na opinião da coordenadora, a punição nestes casos não vai acabar com a violência obstétrica, mas vai constranger quem a pratica.
No caso registrado nesta semana no Rio de Janeiro, em que um médico foi flagrado estuprando uma paciente, Kleyde enaltece o papel das profissionais de saúde que, cientes da prática de violência sexual e de violência obstétrica, produziram provas necessárias para a prisão dele, por meio de um celular.
“Há de se exaltar a importância que este grupo de mulheres teve para que a punição, neste caso, fosse realizada. Foram assertivas e fundamentais. Até para que o tema de violência obstétrica fosse retirado de debaixo do tapete”, disse ela.
Em 2017, uma mãe, que preferiu não se identificar, entrou em trabalho de parto e se recusou a tomar antibiótico. Ela foi chamada de “assassina” pela médica plantonista.
“Eu tinha estudado e sabia dos meus direitos. Ela só parou quando leu meu plano de parto e viu que eu tinha curso superior. Aí falou que não sabia porque naquela maternidade se ‘nivelava por baixo’. E eu sou uma mulher, preta e com ensino superior”, contou.
Outra violência que ela denuncia aconteceu durante a cesárea. “Eu pedi ao cirurgião para tirar o cotovelo do meu peito porque estava sufocando, pois eu reconheci ali talvez uma manobra de Kristeller e ele disse que não tinha como fazer a cirurgia de outra forma”, contou a mulher.
A manobra de Kristeller é uma técnica que pressiona a parte superior do útero para acelerar a saída do bebê, não recomendada pelo Ministério da Saúde.
Em 2021, em Cosmópolis, no interior de São Paulo, a maquiadora Victoria Trujillo perdeu seu filho no 8º mês de gestação por causa da demora em seu atendimento, mesmo com os constantes pedidos de ajuda e relatos de dor intensa que ela fazia à equipe do hospital. Além disso, segundo relata, quando finalmente foi atendida, o médico cometeu assédio sexual contra ela, tocando-a de forma inapropriada.
Victoria disse que a repercussão do caso de violência em São João do Meriti a fez ter sentimentos conflitantes. “[A repercussão é] Positiva, porque pode ser que a justiça seja feita. E negativa, porque é muito difícil mexer nessa ferida.”
Assim como Victoria, Fernanda Wartha Gripa relata que também foi obrigada a esperar atendimento enquanto sentia fortes dores. “Eu comecei a implorar para as enfermeiras, eu berrava que precisava de ajuda. Fiquei duas horas berrando.”, contou. Ela também contou ter percebido uma série de erros no prontuário e desinteresse de parte da equipe médica, inclusive em exames pré-natal do bebê, o que também pode ser considerado violência obstétrica.
Episiotomia
Outro procedimento que é questionado é a episiotomia, que consiste em aumentar a abertura vaginal por meio de um bisturi para facilitar a saída do bebê. Nas legislações estaduais que mencionam a prática, recomenda-se que ela seja utilizada apenas em casos imprescindíveis, quando há risco para mãe ou para o bebê caso o procedimento não seja feito.
Para o Ministério da Saúde, ela não deve ser realizada de rotina, “porém, de forma restrita, sempre antes avaliando seus riscos, após rigorosa avaliação médica, pode ser útil em situações excepcionais.”
Para o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), tanto a manobra de Kristeller como a episiotomia configuram violência obstétrica.
“No contexto da saúde da mulher e da saúde reprodutiva são vivenciados agravos sérios que violam os direitos da mulher”, disse o Cofen, em nota.
Já a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) é contra o uso do termo “violência obstétrica”.
“Trata-se de uma expressão criada com evidente conotação preconceituosa que, sob o falso manto de proteger a parturiente, criminaliza o trabalho de médicos e enfermeiros na nobre e difícil tarefa de atendimento ao parto”, disse a Febrasgo.
Sobre a episiotomia, a Febrasgo defendeu que ela pode ser essencial em alguns casos.
“Desta maneira, incluir a episiotomia no rol dos procedimentos de ‘violência obstétrica’ não é apenas injusto com os(as) parteiros(as), mas perigoso para mulheres e bebês”, se posicionou.
A manobra de Kristeller, técnica que pressiona a parte superior do útero para acelerar a saída do bebê, quando mencionada pelas leis estaduais, não é recomendada.
Trata-se de um procedimento que gera dor e desconforto para a mãe, podendo causar lesões ao bebê. Ele já foi banido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
As leis estaduais que tratam do exame de verificação de dilatação cervical, o exame de toque, recomendam que ele não seja feito de forma indiscriminada ou por vários profissionais. Segundo a OMS, o recomendado é uma vez a cada quatro horas.
Todas as legislações estaduais sobre o tema dizem que ignorar as demandas da mulher relacionadas ao cuidado e à manutenção de suas necessidades básicas, desde que tais demandas não coloquem em risco a saúde da mulher e da criança, é violência obstétrica.
Os desejos dela sobre o parto, seja quanto a posição e a medicação, devem ser respeitadas, observando os riscos para o bebê e para a mãe.
No Brasil, 8 estados e o Distrito Federal têm leis que tratam explicitamente de violência obstétrica, seja em leis específicas, seja em leis mais gerais sobre violência contra mulheres, como é o caso de Santa Catarina.
São eles:
Outros 10 não usam a expressão “violência obstétrica”, mas têm legislações que tratam de parto humanizado; alguns desses dispositivos legais incluem exemplos de práticas recomendadas e não indicadas.
São eles:
Os estados que contam com leis específicas sobre o tema incluem não apenas violências físicas contra a gestante, mas também outros tipos de ação ou omissão que causem sofrimento psicológico à gestante, como ofensas verbais e tratamento agressivo, por exemplo.
A Lei Federal 11.108/2005, conhecida como Lei do Acompanhante, garante às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, o parto e o pós-parto imediato nos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), seja da rede própria ou conveniada.
A lei é válida tanto para parto normal quanto para cesariana, e a presença do acompanhante não pode ser impedida pelo hospital, médicos, enfermeiros ou qualquer outro membro da equipe de saúde.
O acompanhante é de escolha da gestante e pode ser o marido, a mãe, uma amiga ou amigo, ou qualquer pessoa de confiança, sem a necessidade de haver parentesco.
Além da Lei do Acompanhante, outras duas resoluções asseguram a presença de uma pessoa indicada pela parturiente durante o parto: a Resolução Normativa RN 211/2010 da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementa), órgão que regula os planos de saúde no país; e a Resolução da Diretoria Colegiada RDC 36/2008 da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
A resolução da Anvisa estendeu o direito ao acompanhante também à rede privada, ao estabelecer que todos os Serviços de Atenção Obstétrica e Neonatal, sejam públicos, privados, civis ou militares, deve permitir a presença de acompanhante de livre escolha da mulher. Já a resolução da ANS dispõe sobre a obrigatoriedade dos planos de saúde de arcarem com as despesas relativas aos acompanhantes das gestantes.
Fonte: G1