Há mudanças no mundo do trabalho que demandam mais que a atualização da legislação pertinente. Na visão de Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho, diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB SP, as consequências da inserção da tecnologia no dia a dia extingue algumas ocupações, o que impõe ao Brasil uma revisão do sistema de ensino superior, público e privado: “Não formamos cientistas para criar novas coisas, para revolucionar tecnologicamente o país”. Titular da Cadeira nº 21 da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, ele sustenta que a mínima organização de trabalhadores para externar as insatisfações e reivindicar direitos sempre existirá, mesmo em tempos de isolamento e dispersão provocados pelas novas práticas de trabalho.
– As transformações na legislação trabalhista são fruto dos perfis de trabalho que estão surgindo?
– Que era necessária alguma mudança na legislação antiga para adaptá-la a uma nova realidade do trabalho não há dúvida, mas discordo veementemente do direcionamento que foi dado a essas mudanças pela reforma trabalhista e a técnica legislativa utilizada. Sempre defendi mudanças, mas acho que não foram feitas da forma correta e nem têm encontrado resultado esperado até agora, salvo em termos de questão processual, a reforma tinha três grandes bandeiras: aumentar segurança jurídica, reduzir desemprego, e, de uma certa forma, diminuir o número de ações que era muito elevado. Não reduziu o desemprego, não em números reais e impactantes; não aumentou segurança jurídica; e, em relação ao número de ações, reduziu drasticamente, mas não sei se o fez da melhor forma. Penso que o ideal seria que as ações fossem reduzidas porque o número de problemas entre empregador e empregado caiu. Que precisava haver mudança, precisava; mas não acho que esta mudança tenha sido a desejada e a que era de fato necessária.
– No começo do ano, falou-se em extinção da Justiça do Trabalho. Justifica-se?
O fim da Justiça do Trabalho não acabaria com os litígios entre empregado e empregador. Simplesmente íamos tirar o nome Trabalho da parede, que foi o que fizeram com o Ministério do Trabalho. O Ministério acabou, mas as funções foram esquartejadas entre Fazenda, Economia e Justiça. As funções continuam, distribuídas de outra forma. Parece que, por uma disputa ideológica, a palavra trabalho dentro desta linha de governo virou uma palavra incômoda e pejorativa.
– No debate sobre direitos trabalhistas foram feitas comparações com outros países. São apropriadas?
Não acho que seja adequado, são culturas e perspectivas diferentes, níveis de desenvolvimento populacional distintos. Existe muita coisa da legislação que é similar no mundo todo, alguns preceitos elementares da proteção ao trabalhador que são muito inspirados pelo esforço da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em homogeneizar. No passado falava-se de um código internacional do trabalho a partir das diversas convenções e resoluções que a OIT periodicamente editava e que seriam o norte, digamos assim, de todos os países do mundo. Existe uma certa similaridade no universo laboral quando se altera a legislação de um país semelhante ao seu, que disputa mercado parecido com o seu. Surge uma pressão interna para modificar a própria legislação. Durante a crise europeia do final dos anos 2000, a Itália passou por um processo de flexibilização das suas normas trabalhistas. Na sequência a Espanha passou por um período de alteração de suas normas. Esses movimentos inspiraram algumas das mudanças na legislação brasileira. O caso do trabalho intermitente reflete um pouco algumas inovações da legislação italiana e espanhola, assim como a regulamentação do teletrabalho e a ideia polêmica da possibilidade de sobreposição do negociado sobre o legislado. Quando o Brasil aprova a reforma trabalhista, a Argentina que é um país vizinho e disputa um mercado de exportação parecido com o Brasil, se sente pressionada para fazer reforma parecida. Dentro dessa perspectiva, comparar a legislação brasileira com a alemã ou americana não é justo, porque elas têm culturas distintas – sendo que os Estados Unidos não são filiados ao Direito Romano, e sim ao common law, e temos uma lógica própria de pensar as organizações sindicais com outro nível de representatividade e força. Esses países não teriam conseguido essa legislação tão negociada se não estivessem em outro patamar de desenvolvimento econômico.
– O fenômeno chamado de “uberização do trabalho” traz quais desafios para o Direito do Trabalho?
– Trazem desafios de todas as ordens. O primeiro no mundo todo seria definir se esses trabalhadores são ou não empregados. O aplicativo tem enfrentado demandas trabalhistas dos condutores de veículo. Esse é o primeiro ponto que o novo modelo de negócios traz. Agora, quando falamos de “uberização”, temos, na verdade, o fenômeno do trabalho em plataformas digitais. Têm as que simplesmente aproximam, por meio de algoritmos, consumidores e prestadores de serviço. Melhor dos exemplos é o da pessoa que queira disponibilizar um bem ou serviço e aquela que quer contratar, como no caso do AirBnb, dedicado ao aluguel de imóveis. Não cabe discutir relação de emprego, salvo alguma questão periférica relacionada com a limpeza das casas. É um tipo de plataforma que não gera tanto impacto e discussões sobre questões trabalhistas. Nesse caso, o preço não é definido pela plataforma digital, é definido pelo dono do bem ou dono dos serviços. É simplesmente uma intermediação. No caso de plataformas como Uber, que colocam à disposição o cliente e o prestador de serviços, as discussões acerca da questão trabalhista são infindáveis. E impacta a relação do direito de trabalho de forma intensa. A nossa legislação foi pensada na realidade do operário de fábrica, tem três grandes pilares: onde, quando e como. Onde o trabalho é feito? Normalmente na fábrica, no estabelecimento do empregador. Quando? No horário preestabelecido de funcionamento da fábrica. E como? Sempre com instrumentos de trabalho, equipamentos e maquinário do empregador. Quando se criam esses modelos de negócio via plataforma digital, deixa de existir o ambiente de trabalho. As plataformas digitais impactam a nossa noção de proteção do trabalho de forma direta. Quanto mais eu me dedico a estudar o tema, mais me convenço que esses condutores de Uber precisam de alguma forma de proteção. O que os países no mundo todo enfrentam é o dilema de escolher entre três opções: tratar o condutor de Uber como empregado, com todos os direitos, o que acabaria com o modelo do negócio, por conta do custo que estaria agregado e corre risco de não ser adequado; ou tratá-lo como sujeito autônomo, que foi o que fez o decreto presidencial no Brasil quando estabeleceu as condições de contribuição para seguridade social dos condutores de veículo; ou então proibir as plataformas digitais, que é o que acontece na Itália, onde a questão não foi regulamentada e a Uber não opera. O que vem sendo utilizado, na maioria dos países que enfrentaram essa questão, é criar uma forma intermediária de proteção, que não seja tão protetora quanto o vínculo empregatício e nem tão desprotegida quanto o trabalho autônomo. O grande problema é que as experiências têm mostrado que as tentativas de criar uma solução intermediária, que se chama de “terceira via”, acabam implodindo o sistema de proteção ou causando muito mal, gerando precarização. De fato, temos situações no mundo assim que, sob o pretexto de criar uma condição intermediária, acabou servindo para que pessoas protegidas se tornassem mais baratas por meio dessa nova opção.
– Quais as dimensões do trabalho na sociedade atual?
– É aquilo que Bauman chama de sociedade líquida ou de tempos líquidos, enfim, tantas obras que passam por enfrentar esse tema. Vivemos uma época de grande mudança, sobretudo pela tecnologia nas condições humanas, de modo geral. A desconexão do trabalho é cada vez mais difícil em tempos de WhatsApp. Quantas vezes acabamos conversando com colegas de profissão fora do expediente porque existe essa ferramenta? Às vezes em horários totalmente impróprios. A tecnologia impacta a vida humana há muito tempo. Hoje, um dos grandes problemas é estarmos, cada vez mais, em constante regime de trabalho. Mas não é só aí que essa tecnologia vai efetivamente mudar a nossa vida. Hoje vivemos tempos de inteligência artificial e isso para o mercado de trabalho traz uma consequência muito grande. A tecnologia acaba criando novos empregos e extinguindo outros antigos. O grande dilema é tentar fazer com que, primeiro, essa criação de empregos consiga suprir a destruição dos anteriores, o que nem sempre acontece. A tendência é criar bem menos empregos do que os que você destrói. Um exemplo: uma agência bancária dos anos 50, do século passado, tinha muitos empregados. Com a tecnologia, foi significativamente reduzido. Mas existe uma categoria de bancários que não existia, o pessoal da tecnologia da informação. O trabalho não acabou, mas ele foi substituído? Não, não foi. Porque o número é infinitamente menor do que a quantidade de postos que foram sendo extintos por conta da automação. Desaparecem funções como ascensoristas, cobradores de ônibus, entre tantas outras afetadas pela tecnologia, mas, geralmente, de funções pouco qualificadas. Na hora que falamos de inteligência artificial e ela chega a algumas profissões clássicas tradicionais, como o Direito e a Medicina, começamos a perceber que a tecnologia ameaça os postos de trabalho qualificados, que eram considerados protegidos.
– Mas há países com tecnologia e pleno emprego: EUA, Alemanha, Japão e Finlândia…
– A tecnologia extingue empregos, mas países desenvolvidos, que têm controle do seu mecanismo de distribuição dos postos de trabalho e formação profissional, são capazes de direcionar a mão de obra para onde há surgimento de novos. Essa é a grande diferença. Há vários países que têm observatórios permanentes para verificar quais são as profissões, onde surgirão novos postos de trabalho. Percebendo isso, interferem ao invés de continuar insistindo naqueles onde já há uma saturação, ou ameaça de extinção no futuro. Um exemplo fácil de visualizar seria o Ross – o primeiro robô advogado usado nos EUA – que começa a ameaçar postos em escritórios, embora eles precisem contratar pessoas dedicadas à tecnologia da informação. Nessas nações mais avançadas começam a abrir mais vagas na ciência da computação, engenharia da computação e áreas correlatas, com menos vagas no Direito. O problema aqui é que passamos por processo massificado de estímulo à educação privada com sucateamento da pública. Na hora que as universidades privadas passam a ter a maioria das vagas do ensino, ofertam de acordo com o mercado. Então, cursos ligados ao setor terciário como Direito, Administração, Contabilidade, que não demandam laboratórios e outros investimentos, acabam tendo mais oferta do que os ligados à computação, que requerem investimentos significativos em tecnologia. Formamos advogados, médicos, contadores, mas não cientistas para inovar e revolucionar tecnologicamente o país.
– Sempre haverá o mínimo de organização de trabalhadores para reivindicar direitos?
– A ideia da união do mais fraco para a defesa é instinto de sobrevivência natural. Esse fenômeno é próprio do sindicalismo: o trabalhador, percebendo a condição de fragilidade em relação ao empregador, se une a outros para se fortalecer. Essa reação acaba se repetindo, independentemente do modelo de exploração. Converso muito com meus alunos quando dou aula sobre greve, que ela, na verdade, muito mais que um direito ou um crime, é um fato social. Se a greve for proibida, mas a situação de incômodo for grande, ela vai eclodir como erupção vulcânica, e vimos isso nas manifestações de junho de 2013. Você passa a ter efetivamente uma ebulição, que não acontece porque a lei permite, mas porque a insatisfação chegou a um nível de descontrole que não há como segurar os ânimos envolvidos na questão.
Fonte: OAB SP